Imaginei todos os peregrinos[2] à imagem do Santiago, guiados pela Via Láctea, com chapéus de abas largas e frontaria levantada, cabaças ressequidas para transporte de água, velhos bordões toscos e polidos para amparar e marcar o ritmo, sandálias gastas da caminhada e conchas de vieiras como símbolo da garantia da peregrinação até aos longinquos precipícios do mar do Finisterrae galego.
Às vezes imaginava longos cortejos que traziam eminências clericais[3], realeza[4], nobres e figuras célebres[5] e o povo. Ao passar pelas aldeias os sinos tocavam à sua passagem para o tempo duma benzedura e duma breve oração.
Ao longo do Caminho, os cruzeiros com as pedras torcidas pelo cinzel iam mostrando Santiago Maior, ora numa postura de guerreiro em cima dum cavalo branco com a espada desembainhada numa das mãos e na outra um estandarte, ora numa atitude de peregrino sentado ou em pé, trajando chapéu, túnica, manto, sandálias, cabaça, cajado e concha de vieira ou então como Apóstolo, de pé, descalço, de túnica, segurando a Bíblia.
Ali uma igreja, acolá um Cristo saudando a passagem, mais à frente uma humilde capela escondida espreitando por entre as ervas, tudo isto a saudar e a incentivar o peregrino na sua caminhada.
Imaginava[6] que no Caminho tudo era diferente e que o tempo tinha parado nos finais do século XI à minha espera.
Imaginava que todas as pontes eram como a ponte das Fébres ou a poldra no Rego do Pozo Negro, salvo se atravessassem um mar como a ponte de Pontesampayo.
Imaginava que todos os rios eram como o rio Ulló ou o rio de Gándara, salvo se fossem um oceano como o rio Lérez.
Imaginava que todos os caminhos eram como a subida do Cacheiro ou como o trilho ao longo do rio Gándara, salvo se fosse uma longa ruela a atravessar as hortas de Briallos.
Imaginava que todas as florestas eram como os bosques de Reiris ou como os de Lombo de Maceira, salvo se fosse a floresta imensa do vale do Bermaña.
Imaginava que todos os mares eram como o rio Minho ou como o rio Ulla salvo se fosse a ria de Vigo.
E foi com esta imaginação que fui alimentando durante muito tempo um forte desejo de fazer o Caminho de Santiago – tanto queria ser um monge como um nobre, mas sempre um peregrino e quem sabe um penitente.
Era um impulso muito forte dentro de mim, misto de aventura, misticismo, cultura, religião, solidão e de silêncio.
[1] As pedras sagradas medievais são farol seguro no meio da escuridão cientifista que nos rodeia. A brilhante Idade Média é ainda capaz de iluminar o desconcertado homem deste final de milénio. Os seus fulgurantes raios têm ainda vigor suficiente para aquecer o coração do homem do século XX entumecido pelo frio do positivismo – Jaime Cobreros
[2] A palavra vem do latim Per Agros - aquele que atravessa os campos. No caso de Santiago de Compostela há registo de peregrinações que datam do séc.IX e têm como símbolo uma vieira, localmente denominada venera, que advém dos povos que peregrinavam aos confins da terra Finisterra. O primeiro guia de peregrinação foi o Codex Calixtinus escrito no séc.XII pelo Papa Calixto II – Liber Sancti Iacobi em especial o Livro V, Liber Peregrinationis que é o guia das peregrinações do séc.XII cujos onze capítulos foram revistos em 1139 pelo padre francês Aymeric Picaud.
[3] Teodomiro bispo de Iria Flávia, S.Francisco de Assis e o papa Calixto II. Os papas João XXIII e João Paulo II peregrinaram no séc.XX.
[4] O conde D.Henrique, D.Afonso II, D.Sancho II, D.Isabel, D.Pedro, D.Manuel I e o conde de Barcelos pela corte portuguesa; D.Afonso II das Astúrias, D.Fernando de Aragão, D.Isabel de Castela e D.Filipe II pela corte espanhola; Carlos Magno e D.Luis VII pela corte francesa;D.Eduardo I pela corte inglesa.
[5] O León de Rosmithal, Gelmírez, El Cid, Jerónimo Münzer, Claude de Bronserval, Dom Edme de Saulieu, Nicolas Clénard, Sigmundo Cavalli, Bartolomeu Fontana, Bartolomeu Villalba y Estaña, Erich Lassota de Steblovo, Bartolomeu Bourdelot, João Baptista Confalonieri, Jacobo Sobiesky, Pier Maria Baldi, Cosme III de Medicis, Doménico Laffi, Diego de Torres Villaroel, Don Agustín de Herrera, Nicola Albani, Jan Van Eyck.
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